Tema recorrente aqui no blog da Goldberg Consultoria mostra como é difícil consertar a literatura e a percepção geral decorrente dela após casos de má conduta ou de ciência desleixada. Afinal confiança é a base sobre a qual se assenta a construção do conhecimento.
Você confia nos resultados de outro pesquisador e por sua vez adiciona mais um degrau na escada daquele conhecimento e assim por diante.
O caso da ivermectina é emblemático. Após o escândalo original pelo uso de dados oriundos de uma base de dados fraudulenta (empresa Surgisphere) e da publicação de vários estudos com tamanho amostral baixo, dados suspeitos, análises estatísticas falhas e indícios de má-conduta e fraude, seguiram-se diversas retratações, boa parte referente a artigos de revisão e de metanálise que utilizaram como base para as análises justamente essas publicações que se aproveitaram da onda do uso da ivermectina (Ivermectin papers slapped with expressions of concern, Retraction Watch de 15/02/2022).
No entanto a saga continua e apesar de páginas elogiando o uso para o tratamento da Covid-19 e a recomendação ainda presente por governos e autoridades sanitárias em vários países, a evidência acumulada inexoravelmente aponta para a ausência de benefício real oferecido pelo tratamento.
A nota técnica do Ministério da Saúde, confirma a ausência de dados que respaldem esse uso, o FDA (agência reguladora de uso de medicamentos americana) deixa claro a futilidade desse uso (https://www.fda.gov/consumers/consumer-updates/por-que-voce-nao-deve-usar-ivermectina-para-tratar-ou-prevenir-covid-19) e o próprio fabricante não aprova essa recomendação. O youtube está cheio de vídeos feitos por médicos, especialistas, cientistas e jornalistas esclarecendo a inutilidade de se tomar ivermectina para Covid-19.
E às pessoas que insistem em creditar sua melhora ao emprego do kit covid que inclui a ivermectina, a resposta é muito simples: Você teria melhorado do mesmo jeito, pois o remédio é ineficaz para tratar essa doença! O estudo mais recente do qual tenho notícia, publicado em fevereiro de 2022 no prestigioso Jornal da Associação Médica Americana (doi:10.1001/jamainternmed.2022.0189) descreve os resultados de um ensaio clínico feito seguindo as normas das Boas Práticas Clínicas e o resultado foi mais uma vez, mesmo no tratamento precoce, a falta de benefícios.
De fato, em torno de 20% (!) dos pacientes, tomando ou não tomando a ivermectina, na dose preconizada, progrediram para a doença grave, necessitando de terapia intensiva!
Por fim, ilustrando bem porque o uso sem evidência comprovada nunca deve ser recomendado, matéria do jornal The Guardian publicado em 16 de fevereiro de 2022 (Arkansas jail’s ivermectin experiments recall historical medical abuse of imprisoned minorities) relata os efeitos nefastos do uso indiscriminado da droga, no caso, em dose muito acima da recomendada, em prisioneiros numa penitenciária do Arkansas. Majoritariamente negros, e, apesar de relatando os efeitos colaterais graves desenvolvidos, não foram ouvidos nem socorridos. Um inquérito evidenciou que ao desenvolverem sintomas de Covid-19, foram medicados sem nenhum esclarecimento e sem seu consentimento prévio, uma triste recapitulação do famoso caso da penitenciária de Tuskegee que durou 4 décadas (https://www.ufrgs.br/bioetica/tueke2.htm) e deixou morrer pacientes com sífilis sem que fosse tomada nenhuma providência ou tratamento.
Você sabia que medicar uma pessoa sem seu prévio esclarecimento e consentimento é eticamente condenado?
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